Crack: uma questão de saúde pública. Entrevista especial com Marcelo Ribeiro de Araújo
“O crack já se interiorizou. Hoje, 98% das cidades convivem com esse problema”, informa o psiquiatra.Confira a entrevista.
Os investimentos em políticas públicas de enfrentamento ao crack
são recentes, iniciaram nos anos 2000, e esse é um dos motivos da
desarticulação no tratamento dos dependentes químicos. "O preconceito em
relação ao tratamento", segundo Marcelo Ribeiro de Araújo,
também contribui para a desarticulação, " porque ainda existem pessoas
que acham que ‘passar a borracha’ nos usuários é a melhor solução” para
acabar com as drogas.
Para ele, o desafio em relação ao
tratamento dos usuários de crack é tratar o caso como um problema de
saúde pública. Nesse sentido, avalia, os Centros de Atenção Psicossocial-Álcool e Drogas (Caps-AD)
representam um avanço, “mas os profissionais ainda não receberam toda a
capacitação que poderiam ter recebido”. E dispara: “O grande problema é
que as pessoas colocam a responsabilidade toda no Caps,
mas ele não consegue resolver o problema da dependência química. Alguns
pacientes se beneficiam com o Caps e outros não. Têm pacientes que
precisam, por exemplo, de uma moradia assistida, que é um intermediário,
e isso ainda não existe no Brasil”.
Em entrevista concedida à IHU On-Line por telefone, Araújo diz que o consumo do crack está associado a situações de violência e abuso. Nesse sentido, argumenta, “retirar os viciados da cracolândia não vai resolver
o problema da dependência. É preciso oferecer serviços para esses
indivíduos, associados a outras medidas, como a de saneamento, por
exemplo. Ao encarar a cracolândia como uma área de traficantes e apenas
querer limpar o espaço, se corre o risco de piorar a situação daqueles
que estão seriamente dependentes do crack”.
Marcelo Ribeiro de Araújo
é mestre e doutor em Psiquiatria pela Universidade Federal de São Paulo
– Unifesp. Atualmente é diretor de ensino da Unidade de Pesquisas em
Álcool e Drogas da mesma universidade e autor do livro O Tratamento do Usuário do Crack (editora Artmed).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Hoje as campanhas de combate as drogas focam muito no consumo de crack. Por quê? Essa é a droga mais utilizada e a que causa maior dependência?
Marcelo Ribeiro de Araújo –
Sim. O crack é uma droga que de fato desorganiza os usuários, porque
eles ficam muito dependentes e desestruturados. Os usuários de crack
também são os que mais buscam tratamento, ou são levados a buscar pela
família ou por outras pessoas. O crack é uma droga que impacta, e é
usada em grupos, em locais abandonados, e tudo isso atrai a atenção dos
usuários.
IHU On-Line - Quais são os principais efeitos do crack sobre o psiquismo do sujeito?
Marcelo Ribeiro de Araújo - O crack é a cocaína na sua apresentação para ser fumada.
Então, nesse sentido, farmacologicamente, ele é a cocaína. A cocaína é
um estimulante do sistema nervoso que, quando utilizada, provoca um
quadro de euforia e de bem estar, que é o que as pessoas buscam
inicialmente, juntamente com um quadro de aumento da alerta,
inquietação, aceleração psicomotora, aumento dos batimentos cardíacos.
Isso tudo acompanha a intoxicação por essa substância.
A diferença entre ela e a cocaína cheirada é que a cocaína fumada (crack) atinge os pulmões, e uma grande quantidade de cocaína entra de uma vez só no corpo, atingindo rapidamente o cérebro. De cinco a oito segundos, a cocaína entra pelos pulmões, passa pelo coração e chega no cérebro. Então, o crack produz um efeito intenso e rápido, causando maior dependência.
A diferença entre ela e a cocaína cheirada é que a cocaína fumada (crack) atinge os pulmões, e uma grande quantidade de cocaína entra de uma vez só no corpo, atingindo rapidamente o cérebro. De cinco a oito segundos, a cocaína entra pelos pulmões, passa pelo coração e chega no cérebro. Então, o crack produz um efeito intenso e rápido, causando maior dependência.
IHU On-Line - Desde quando o Brasil investe em políticas públicas de enfrentamento ao crack e quais são as políticas existentes para tratar os dependentes?
Marcelo Ribeiro de Araújo -
As políticas públicas são muito recentes e realizadas pelo governo
federal, governos estaduais e municipais, de uma maneira que poderia ser
melhor integrada. Para você ter uma ideia, até 2003 não havia serviços
para tratamentos específicos ambulatoriais para dependência química.
Havia apenas seis serviços: três em São Paulo, um na Bahia, um no Rio e
um em Porto Alegre.
IHU On-Line - Como é realizado o tratamento de dependentes químicos no Centros de Atenção Psicossocial-Álcool e Drogas (Caps-AD)?
Marcelo Ribeiro de Araújo -
Quando um tratamento começa, avaliamos qual é a estrutura química,
física e social do paciente. A partir daí, escolhemos as opções que
melhor atenderão as necessidades dele. Esse é o conceito atual. Então, é
feita uma avaliação das necessidades e a partir disso, tentamos começar
o tratamento com uma proposta terapêutica, onde são considerados os
ambientes que temos à disposição (podem ser os ambulatórios, podem ser
as clínicas, as comunidades terapêuticas, os hospitais). É escolhido o
melhor ambiente, pensado na equipe de profissionais disponível para
ajudar esse paciente e nas estruturas de apoio sociais
– se o dependente químico tem filhos, procuramos uma creche para a
criança, por exemplo. Portanto, algumas decisões são clínicas e outras,
sociais.
Os profissionais que atuam com os dependentes são o que chamamos de gerentes de caso, porque ficam junto com o paciente, próximo do dia a dia dele, e além do tratamento psicológico, ajudam e monitoram outras questões da vida social.
Os profissionais que atuam com os dependentes são o que chamamos de gerentes de caso, porque ficam junto com o paciente, próximo do dia a dia dele, e além do tratamento psicológico, ajudam e monitoram outras questões da vida social.
IHU On-Line – E como acontece isso na prática? O Brasil está preparado para esse modelo de tratamento?
Marcelo Ribeiro de Araújo -
A partir dos anos 1980 e 1990, foram fechadas todas as clínicas de
internação. Havia vários manicômios velhos, cheios de ratos, onde as
pessoas ficavam completamente abandonadas. O problema é que após
fecharmos os manicômios, não colocamos nenhum modelo de internação no
lugar, e algumas pessoas precisam ser internadas. Algumas vezes, não
sempre, é bom começar o tratamento por uma desintoxicação de um mês. Tem
pessoas que ficam muito comprometidas socialmente porque desistem de
uma internação em comunidade terapêutica.
Têm pacientes que se beneficiam do Caps, mas este é um tratamento que requer uma estrutura do dependente, pois ele precisa marcar a consulta, e ir às reconsultas. Esse é um tratamento para alguém que já está conseguindo se estruturar melhor. Atualmente, existem Caps nas capitais e nas cidades médias ou naquelas que possuem Universidades Federais, Estaduais. Ainda falta integrar melhor o Caps com o tratamento informal.
Têm pacientes que se beneficiam do Caps, mas este é um tratamento que requer uma estrutura do dependente, pois ele precisa marcar a consulta, e ir às reconsultas. Esse é um tratamento para alguém que já está conseguindo se estruturar melhor. Atualmente, existem Caps nas capitais e nas cidades médias ou naquelas que possuem Universidades Federais, Estaduais. Ainda falta integrar melhor o Caps com o tratamento informal.
IHU On-Line - Como o senhor avalia o desempenho dos Centros de Atenção Psicossocial-Álcool e Drogas (Caps-AD)?
Marcelo Ribeiro de Araújo -
A adaptação, às vezes, fica prejudicada porque como poucas pessoas
trabalham com o tema no Brasil e não há muitos locais para se capacitar.
Os profissionais ainda não receberam toda a capacitação que poderiam ter recebido. O grande problema é que as pessoas colocam a responsabilidade toda no Caps, mas ele não consegue resolver o problema da dependência química. Alguns pacientes se beneficiam com o Caps e
outros não. Têm pacientes que precisam, por exemplo, de uma moradia
assistida, que é um intermediário, e isso ainda não existe no Brasil.
Antes dos anos 1990, não tinha política nenhuma, o que surgiu no governo Fernando Henrique Cardoso foi uma grande carta de intenções, que se preocupava mais com a repressão do que em estruturar uma rede de tratamento para os dependentes químicos. Mas esse era o momento histórico. Foi desenvolvido um trabalho de colocar no papel tudo o que entendíamos por dependência, doença, mas a política de enfrentamento para o crack veio aparecer agora. Depois que a Dilma assumiu, ela fez o plano de enfrentamento e as propostas são válidas. Ela está pensando em diversificar a rede, e capacitar os profissionais. A ideia que está no papel é boa.
Antes dos anos 1990, não tinha política nenhuma, o que surgiu no governo Fernando Henrique Cardoso foi uma grande carta de intenções, que se preocupava mais com a repressão do que em estruturar uma rede de tratamento para os dependentes químicos. Mas esse era o momento histórico. Foi desenvolvido um trabalho de colocar no papel tudo o que entendíamos por dependência, doença, mas a política de enfrentamento para o crack veio aparecer agora. Depois que a Dilma assumiu, ela fez o plano de enfrentamento e as propostas são válidas. Ela está pensando em diversificar a rede, e capacitar os profissionais. A ideia que está no papel é boa.
IHU On-Line - Alguns especialistas alegam que a desarticulação entre as políticas de segurança, saúde e assistência social tem prejudicado o tratamento de dependentes em crack. O senhor concorda? Quais são as razões desta desarticulação entre as políticas públicas?
Marcelo Ribeiro de Araújo –
O motivo desta desarticulação é porque o país investe em política
pública nessa área há pouquíssimo tempo. Então, as pessoas ainda estão
“batendo a cabeça”. A falta de articulação também esbarra no preconceito
em relação ao tratamento, porque ainda existem pessoas que acham que “passar a borracha”
nos usuários de droga é a melhor solução. Essa é uma mentalidade da
cultura dos indivíduos. Está no imaginário das pessoas essa concepção de
que o dependente químico é um drogado e que não há problema em tratá-lo
com violência. As pessoas, às vezes, acabam agindo de uma maneira
equivocada.
IHU On-Line - Quais os desafios de tratar a dependência química como um problema de saúde pública e não como uma questão de segurança?
Marcelo Ribeiro de Araújo – O
grande desafio é possuirmos ambientes e capacitação, além de ter a
oportunidade de influir nos momentos em que se definem as políticas
públicas. É uma questão de encarar o crack como uma questão de saúde
pública. Retirar os viciados da cracolândia não vai resolver o problema
da dependência. É preciso oferecer serviços para esses indivíduos,
associados a outras medidas, como a de saneamento, por exemplo. Ao
encarar a cracolândia como uma área de traficantes e apenas querer
limpar o espaço, se corre o risco de piorar a situação daqueles que
estão seriamente dependentes do crack.
IHU On-Line - Considerando as pesquisas que o senhor realiza na universidade e o contato que tem com dependentes, diria que houve uma evolução no tratamento com dependentes químicos nos últimos anos?
Marcelo Ribeiro de Araújo –
Com certeza. Evoluímos bastante. Fiz um mapa sob como o crac foi
evoluindo no Brasil nesses 23 anos e percebi que quando o tema entrou em
pauta, nós, pesquisadores, se quer publicávamos sobre o tema –
ficávamos fazendo revisão de artigos. Hoje, pelo contrário, temos muitos
profissionais pesquisando sobre o assunto, vários serviços de
assistência aos dependentes químicos. Nós avançamos muito em pesquisa e
nos tratamentos, só que infelizmente ainda estamos no começo. Essa é a
principal questão.
IHU On-Line - Como o uso de crack evoluiu nesses 23 anos? O perfil dos consumidores também mudou?
Marcelo Ribeiro de Araújo –
O crack ainda continua sendo uma droga de pessoas de classe baixa e que
têm baixa escolaridade. A classe média também consome, mas está longe
de ser o grande consumidor. Os usuários são pobres, com histórico de
violência e abuso. Nesse período, houve de fato uma disseminação do
crack pelas grandes cidades: São Paulo, Porto Alegre, o restante do Sul,
Belo Horizonte e depois a droga foi sendo espalhada para o Rio de
Janeiro e Nordeste. O crack já se interiorizou. Hoje, 98% das cidades convivem com esse problema. Em municípios de 10 mil habitantes, até os bóias-frias fumam a droga.
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